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Domingo, 16.10.22

Uma visita breve - e crítica - à revisão de 2019 do ETAF, com uma paragem na especialização dos juízos e dos juízes

Mariana Rodrigues (62577)

O Contencioso Administrativo e Tributário, muito graças ao seu passado traumático do qual ainda hoje encontramos resquícios, foi sofrendo alguns percalços e alterações ao longo do tempo: 2002-2004; 2015; e 2019.

Tendo presente o objetivo deste trabalho, cabe somente fazer uma brevíssima menção à Reforma de 2002-2004[1], para efeitos de contextualização: “momento a partir do qual o subsistema processual administrativo português deu finalmente concretização – ao menos em termos legislativos – ao imperativo constitucional da tutela jurisdicional efetiva”[2] ao aumentar e consolidar a rede de Tribunais e Juízes Administrativos e Fiscais, entre outros avanços, que foram finalmente de encontro aos valores prosseguidos por um Estado de Direito democrático. Depois disso, passamos a ter “reforminhas”[3], entre as quais, e tendo em conta o tema que procurarei aprofundar – o da especialização –, releva a Reforminha, ou Revisão[4], de 2019 decorrente do pacote incidente na Reforma da Justiça Administrativa e Fiscal, aprovado em sede de Conselho de Ministros a 20 de Setembro de 2018.

Esta Revisão, apesar de alvo de críticas que considero fundamentadas - e que apreciarei -, tomou um passo de louvar ao admitir aquele que é o mais trágico e central problema do Contencioso, ainda hoje: a morosidade das decisões, e a acumulação de pendências[5] inaceitáveis quer de um ponto de vista constitucional (atendendo ao artigo 20.º, CRP), quer de um ponto de vista europeu (tendo em conta, em especial, o artigo 19.º, n.º 1, 2.º parágrafo, TUE, e ainda o artigo 47.º, CDFUE).

Apesar de ser considerada, para alguns: “a mais relevante alteração realizada desde 2004.”[6] E de algumas das suas medidas serem manifestamente úteis, contudo, a sua concretização ficou, na sua esmagadora maioria, aquém do esperado. Em muito parece dever-se ao ainda presente receio de se alterar um paradigma que há muito se identificou como errado, porque se procura conservar, no essencial, uma estrutura que está a precisar de manutenção, e investimento (material e humano). Ao invés o legislador acabou por focar-se maioritariamente, em precisões linguísticas, cuja clareza nunca havia sido sequer questionada, e em criar novos problemas[7] que se encontram lado a lado com os pré-existentes, que continuam a colocar-se, embora agora com ligeiras melhorias que se têm vindo a sentir somente agora.[8]

Em sumula, a Lei 167/XIII/4.ª[9] previa três matérias basilares onde se deveria focar a Revisão do ETAF (de 2019):

  1. Especialização à incidindo, em especial, nos Tribunais de Círculo (1ª instância) e de acordo com um critério material (e já não estatístico) nos termos do artigo 9.º e 44.º-A, ETAF; e em relação aos tribunais tributários com algumas particularidades nos termos do artigo 9.º-A, ETAF[10].
  2. Assessoria à prevê-se aqui alguma mudança, ainda que, mais uma vez, mais formal que prática, porque se operou ao tentativa de simplificação ao nível dos gabinetes de apoio e assessoria jurídica, procurando alargar-se essa medida para os TCA’s (Tribunais de 2.ª Instância). De relevar, neste âmbito, os n.ºs 2 e 3, do artigo 56, 56.º-A, ETAF.
  • Administração e gestão dos tribunais à com a criação de um Presidente por área geográfica[11] (Artigo 43.º e 43.º-A, ETAF) cuja jurisdição envolve um conjunto de Tribunais de Círculo e Tributários (da área), sendo auxiliado no exercício das suas funções (Administrador Judiciário, e a figura do MP coordenador).

Quanto à especialização da Jurisdição, em concreto, a sua possibilidade já se encontrava consagrada na lei desde 2002[12], mas sofreu um reforço com o DL n.º 174/2019[13], e tem sido desenvolvida e densificada por sucessivas Portarias[14] que se focam na reorganização logística e institucional da justiça administrativa e tributária, entre as quais a Portaria 121/2020 que peca por tardia, mas veio ordenar a criação e posterior entrada em vigor (a 1 de setembro de 2020) dos juízos especializados.

Importa perceber que esta necessidade decorre de um contexto de “crescente segmentação e tecnicidade da vida económica e social.”[15] E, portanto, a solução não deve passar somente pela criação de juízos especializados, mas sim por uma especialização multinível que abranja não só os tribunais, como os juízes que neles desempenham funções e que, infelizmente, não possuem muitas vezes formação específica para dirimir os litígios com que se deparam no dia a dia[16]. Muitos deles, como aponta o Senhor Professor Vasco Pereira da Silva[17], desempenham funções toda a vida nos Tribunais Comuns e decidem passar os seus últimos anos num Supremo, recorrendo ao STA, sem nunca terem aplicado Direito Administrativo. Deve apostar-se, por isso, numa formação contínua[18] e detalhada dos juízes que exercem funções na Jurisdição Administrativa e Tributária, que atenda às especificidades dos regimes que os mesmos irão aplicar, e tal é uma tarefa que cabe ao próprio Sistema de Justiça.  Não basta uma formação ad hoc.

Esta medida poderia ter sido tomada, desde logo, em 2019[19], colhendo benefícios não só ao nível da morosidade e celeridade processual, mas também numa perspetiva de economia processual e de mérito das próprias decisões, atendendo a que juízes melhores preparados tornariam mais rápida a tomada de decisão e mais reduzida a possibilidade de, a partir da mesma, se levantarem novas questões de mérito da causa ou da sentença, ou, no limite, se reduz o tempo despendido para a preparação e fundamentação das decisões.

Infelizmente, para além disto, o modo como a Reforma do ETAF (2019) foi feita criou ainda alguns conflitos[20] de competências entre juízos, que podem levar ao questionamento dos benefícios da especialização – que deveriam ser inquestionáveis[21] em qualquer sociedade desenvolvida -, e tal sucedeu porque preterida a necessidade de um elevado grau rigor jurídico e clareza na redação  das regras disciplinadoras da especialização em função da matéria[22].

Enquanto isto não se fizer, estamos a “chutar uma bola de pêlo”,  em vez de a limparmos de uma vez por todas e é isso que leva Vasco Pereira da Silva a defender que: “Ao útil se juntou o desnecessário ou mesmo o ‘supérfluo’, outras vezes ainda o erróneo, mesmo que sempre sob a ‘capa protetora’ do primeiro.”[23], levando à necessidade de prova oral do ETAF.

O que pretende não é criticar este conjunto de medidas, mas demonstrar, sim, que mais uma vez são insuficientes se não forem acompanhadas de um reforço real de meios de resposta[24], e de condições para que os juízes trabalhem e estejam o melhor capacitados possível para o fazer[25].

Em suma, e sem mais delongas, acabarei com uma frase da autoria de Vítor Gomes, que considero interessante ter em conta na reflexão deste tópico: “Não basta proporcionar o edifício normativo, é necessário torná-lo atuante.”

Gráfico 1 – Esquema dos Juízos Especializados, criados pela Portaria de 121/2020, publicada no DRE a 22 de Maio de 2020.

 

[1] De notar a visão crítica de Mário Aroso de Almeida: “A notória falta de investimento na jurisdição que se registou até 2003 conduziu a uma situação de quase rutura. E, após o fugaz investimento feito em 2003, só por si muito insuficiente para as necessidades, o evidente desinvestimento que, entretanto, foi mantido ao longo dos quinze anos subsequentes conduziu ao apodrecimento da situação que é hoje por todos reconhecido.” (em Breves apontamentos sobre algumas alterações ao CPTA previstas na Proposta de Lei n.º 168/XIII, ICJP, 2019, Mário Aroso de Almeida).

[2] Ainda sobre o direito de tutela jurisdicional efetiva e plena, já Gomes Canotilho e Vital Moreira, na CRP Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007 explanavam que: “O direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva plena é, ele mesmo, um direito fundamental constituindo uma garantia imprescindível da proteção de direitos fundamentais, sendo, por isso, inerente à ideia de Estado de Direito. (…) É certo que carece de conformação legislativa, ao mesmo tempo em que lhe é congénita uma incontornável dimensão prestacional a cargo do Estado (e hoje, também da União Europeia).”

E ainda Vasco Pereira da Silva, em Revisitando a “reforminha” do processo administrativo de 2019, revista epublica, n.º 6, n.º 3, 2019, CJP e CIDP: “concretizou os princípios fundamentais de um Processo Administrativo verdadeiramente jurisdicionalizado e destinado à tutela plena e efetiva dos direitos dos particulares (n.º 4 e 5, artigo 268.º, CRP) … marcado pelos ‘traumas da infância difícil’ o contencioso português era mais uma ‘parte’ do direito administrativo substantivo, nos termos da teoria monista da continuidade entre procedimento e processo, do que uma disciplina processual, como deveria ter logo resultado da diferenciação entre administração e justiça, determinada pela CRP de ’76 (sobretudo depois das revisões de ’89 e ’97).”

[3] Expressão utilizada pelo Senhor Professor Vasco Pereira da Silva quer em sede de aulas plenárias (dia 10 e 13 de Outubro, de 2022) quer nos seus textos escritos, como é o caso da obra: Reformas e Reforminhas do Contencioso – A especialização dos juízes administrativos em concreto, CJP e CIDP, 2019.  

[4] Terminologia adotada pelos professores Francisco Paes Marques e José Duarte Coimbra, em Revisão do CPTA, revista epublica, vol. 6 n.º 3, dezembro 2019, Pedro Moniz Lopes, Francisco Paes Marques, José Duarte Coimbra, onde se pode ler: “é duvidoso epitetar a revisão legislativa de 2015 de vera e própria ‘reforma’ muito mais certa parece ser a impropriedade de o fazer em relação ao conjunto – bem menos significativo – de alterações ao ETAF e ao CPTA a que deram corpo, respetivamente, a Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, e a Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro.”

[5] Já o Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra havia elaborado um estudo científico, requerido pelo Ministério da Justiça, onde diagnosticava “problemas graves da jurisdição fiscal.”  Falando de “elevadas pendências e a morosidade das suas decisões, suscetíveis de pôr em causa a garantia do direito Constitucional a uma tutela jurisdicional efetiva e atempada.” (em Notas sobre algumas medidas propostas ao nível da organização e funcionamento da jurisdição fiscal, em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019, Fernanda Esteves).

[6] Introdução à reforma do contencioso tributário em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019, Nuno Cunha Rodrigues.

[7] De referir, como fundamentação destes novos problemas, por exemplo, o aditamento da al. e), no n.º 4, do artigo 4.º, ETAF, que nem foi discutido e que exclui os litígios referentes a consumos decorrentes da prestação de serviços públicos essenciais da jurisdição administrativa e tributária. Levanta graves dúvidas quando ao serviço seja fornecido em articulação com entidades públicas territoriais municipais às quais se aplica Direito Público, em salvaguarda dos particulares. Já há possível solução – a de acrescentar, in fine: “desde que não envolvam a aplicação de normas de direito administrativo e tributário” (como defende Ana Gouveia Martins). Caso demonstrativo desta problemática levantada é o caso das águas de Cascais, uma empresa concessionário do sistema municipal de distribuição de águas do município de cascais. Quid iuris Sobre este ponto, colhe a perspetiva do Senhor Professor Vasco Pereira da Silva que aponta: “Não se consegue perceber, nem porquê surge tal proposta, nem para quê ela serve (?)… Pois do que se trata é de serviços públicos (…) que se revestem de uma importância histórica fundamental, pois estão por detrás de algumas das mais importantes noções do Direito Administrativo.”

[8] Devem-se ao Grupo de Trabalho que estudou, e estuda ainda hoje, a Reforma da nossa Justiça Administrativa e Fiscal, e onde existem visões diferentes e até críticas, como a de Carlos Carvalho que fala , a este propósito, daqueles “que eram e ainda são os problemas sentidos e as questões/desafios colocados à jurisdição administrativa e fiscal, que motivar ou desencadearam, em grande medida, este processo legislativo” (em Debate sobre a reforma da organização e funcionamento da jurisdição administrativa e fiscal: a especialização e a assessoria, em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019), o que demonstra a insuficiente e ineficácia desta reforma, ainda que parcial, pelo menos no que toca aos objetivos que a levaram a suceder.

[9] Da iniciativa do Governo nos termos do artigo 197.º, n.º 1, al. d), CRP, assim como dos artigo 124.º, Regimento da Assembleia da República. Incide igualmente sobre a revisão do ETAF.

[10] Consultar o esquema 1 que consta na última página.

[11] As zonas geográficas do ETAF foram concretizadas pela Portaria n.º 366/2019, especial relevância o seu artigo 2.º

[12] Consultar a Lei n.º 13/2002 que previa já o desdobramento de juízos, tendo ainda como critério, no entanto, o volume ou a complexidade do serviço a ser prestado. Não é este hoje o entendimento que colhe, que decide focar-se na matéria para uma real especialização: “especialização operativa e respeitadora dos princípios fundadores de toda a função jurisdicional.” Em Introdução à reforma do contencioso tributário em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019, Nuno Cunha Rodrigues:

[13] Este DL opera a revisão do ETAF19.

[14] De colher a perspetiva do Professor Mário Aroso de Almeida quando defende que: “A proposta de lei n.º 168/XIII não é de molde a dar resposta ao problema, porque o problema não é falta de leis e portarias: é de falta de meios.”

[15] Apresentação das propostas de lei n.º 167 a 169/XIII, Diário da Assembleia da República, 4ª sessão legislativa (2018-2019), XIII Legislatura, II Série A- n.º 40.

[16] A formação dos magistrados é feita no CEJ, não apresentando diferenças consoante os Tribunais em que os profissionais irão exercer.

[17] Em sede de aula plenária, no passado dia 13 de outubro de 2022.

[18] Falo de uma formação contínua para que fosse possível um fácil acompanhamento das atualizações em sede de Direito Administrativo e Fiscal. Os juristas são, do meu ponto de vista, estudantes durante toda a sua vida, pois exercem profissões que lhes exigem estar sempre ao corrente das mais recentes alterações para melhor satisfazer as necessidades daqueles que os procuram. A perspetiva que aqui colhe é preconizada também por Carlos Carvalho (em Debate sobre a reforma da organização e funcionamento da jurisdição administrativa e fiscal: a especialização e a assessoria, em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019) e por Vasco Pereira da Silva (aula plenária). E ainda a professora Ana Gouveia: “a almejada maior celeridade, eficiência e justiça das decisões judiciais a proferir pelos juízos de competência especializada só será atingida caso seja efetivamente assegurada uma formação inicial e contínua apta a garantir a especialização, o aprofundamento e a permanente atualização nos vários domínios dos conhecimentos técnico-jurídicos, bem como se a decisão de seleção e colocação de magistrados nesses juízos for determinada pelo critério do seu nível de especialização nas temáticas envolvidas.”

[19] Daí também Vasco Pereira da Silva referir que se perdeu uma boa oportunidade, em 2019.

[20] Sobre estes conflitos, refere-se o Relatório Intercalar do Grupo de Trabalho para a Justiça Administrativa e Fiscal de Fevereiro de 2022: “A implementação da especialização em matéria administrativo nos tribunais administrativo de círculo que criou conflitos negativos de competência, em razão da matéria. Tais conflitos originaram o retardamento da prolação das decisões de mérito e ameaçam a eficácia e eficiência dos tribunais administrativos de círculo. Por forma a obviar a este tipo de conflitos, propõe-se uma alteração do ETAF, no sentido da clarificação da competência material dos juízos administrativos sociais e dos  juízos de contratos públicos dos tribunais administrativos de círculo.”

[21] Basta uma visão comparatística com países como Espanha, Finlândia, Eslovénia e Holanda para perceber que este modelo de especialização tem apresentando resultados bastante satisfatórios.

[22] Tal foi defendido, por intervenção no Grupo de Trabalho, por Carlos Carvalho, que também aludiu para a especialização não só dos Tribunais de 1ª instância, como também de Tribunais Superiores como os TCA’s, constando dos Artigos 14.º, n.º 3 e 32.º, n.º 3 e 32.º, n.º 3, do Anteprojeto do ETAF, no entanto, tal não foi preconizado na Proposta de Lei n.º 167/XIII/4.ª e é agora, felizmente, alvo de pedido de aditamento por parte do Grupo de Trabalho, no seu Relatório Intercalar de Fevereiro de 2022 ao dizer:“Outra medida proposta relaciona-se, por um lado, com a atual elevada pendência judicial nos Tribunais Centrais Administrativos e, por outro, com a crescente amplificação e sofisticação dos diversos ramos do Direito, em particular do Direito Administrativo Especial, que temos vindo a assistir. Tendo como meta o reforço da eficácia e eficiência destes tribunais, propõe-se o aditamento de uma nova norma que estatua que, por deliberação do CSTAF podem ser criadas, nos tribunais centrais administrativos, subsecções em função da matéria.”  

[23] Do útil, do supérfluo e do erróneo: Breves apontamentos sobre as propostas de revisão do Contencioso Administrativo e Fiscal, em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019, Vasco Pereira da Silva.

[24] “Esse reforço, se concretizado, ‘musculando’ a capacidade das equipas e do sistema, constituirá uma clara mais-valia para o sucesso e eficácia desta medida, objetivos que todos desejamos, cientes de que para tal sucesso se revelam cruciais ou essenciais os mecanismos de gestão, a definição dos objetivos e monitorização do funcionamento das equipas.” (Em Debate sobre a reforma da organização e funcionamento da jurisdição administrativa e fiscal: a especialização e a assessoria, em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019.

E ainda Vítor Gomes: ““Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal não tem, nem realisticamente vejo que posso obter a curto prazo, meios que lhes permitam enfrentar novos desafios sem antes resolver o seu crónico e principal problema: o do contingente de processos acumulados.” (Tendências futuras da justiça administrativa e fiscal, ICJP, 2019).

[25] Ainda neste sentido Ana Gouveia Martins: “o caminho para assegurar uma tutela efetiva e em tempo razoável passa por dotar a jurisdição administrativa e fiscal dos meios humanos e materiais indispensáveis à realização da sua função como bastião de defesa dos direitos dos particulares e dos valores fundamentais da comunidade ainda que sem radicação subjetiva, bem como de garantia do respeito pelo bloco de juridicidade pela Administração.” (em Organização e funcionamento da jurisdição administrativa, em especial o âmbito da jurisdição e a criação de tribunais administrativos especializados, em Atas da Conferência do CAT, ICJP, 2019).

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por ano4subturma6 às 23:07

Domingo, 16.10.22

O Conflito de Funções do Ministério Público

O Ministério Público é um dos órgãos centrais da garantia de legalidade e promoção do interesse público português. É um órgão constitucional, previsto no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e no art.º. 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), onde lhe são atribuídas competências de administração de justiça de forma generalizada, sendo as suas competências expandidas e elaboradas em âmbito do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) e nos seus próprios estatutos (EMP).

Dentro das suas funções, o Ministério Público pode intervir e propor como parte no exercício da ação pública (art.º. 9º, nº. 2, CPTA), representar o Estado em ações propostas contra este (art.º. 11º, nº. 1, CPTA) e pode ainda intervir em processos administrativos nos quais não seja parte se, em termos de matéria, se justificar (art.º. 85º, CPTA).

Estas competências do Ministério nascem do dever deste de representação do Estado, seguindo o interesse público, e de defesa da legalidade democrática (funções atribuídas no art.º. 219º, nº. 1, CRP; art.º. 51º, ETAF; art.º. 2º e 3º, n.º 1, Estatuto do Ministério Público; e art.º. 3º, nº. 1, LOSJ).

 Apresenta-se então a questão da existência de situações de incompatibilidade entre as duas funções, sendo que o Ministério Público pode agir tanto como representante do Estado, como prossecutor deste em ocasião de defesa da legalidade democrática.

Primeiramente, há que ter em conta de que a representação do Estado por parte do Ministério Público não é obrigatória, indicando o art.º. 11º, n.º 1 do CPTA que o Estado pode escolher outro tipo de representante para além do Ministério Público. A falta de cariz de obrigatoriedade quanto à representação indica, desde já, que as previamente mencionadas situações de incompatibilidade foram tidas em conta pelo legislador, de modo a estas não se tornarem insanáveis e impeditivas do exercício das funções do Ministério.

 Este tipo de conflitos surge em situações em que se pretenda alegar a ilegalidade de uma ação ou omissão proveniente do Estado. Aqui compete ao Ministério Público defender a legalidade, mas pode também competir representar o Estado, gerando assim no Ministério Público um papel dúplice e incompatível.

Grande parte da doutrina crê que o Ministério Público não pode fazer prevalecer a função de representação, pois, sendo um órgão independente e autónomo, não pode estar incumbido de representar o Estado, devendo prevalecer a função de defesa da legalidade.

Nesta corrente os Professores Mário Aroso de Almeida e Alexandra Leitão são da opinião de que a possibilidade de representação do Estado deve ser excluída em situações de conflitos de interesses.

Segundo a professora Alexandra Leitão, “a melhor solução seria retirar ao Ministério Público a função de representação do Estado exatamente para evitar situações de conflito entre a defesa da legalidade e a defesa do Estado”. Defende a posição com o facto de o Ministério Público ser uma magistratura, o que significa que deve sempre prevalecer a defesa da legalidade.

Outra solução doutrinária é a apresentada pelo professor Vieira de Andrade, que, sem sobrepor a função de defesa da legalidade democrática à função de representação, aponta não haver razão para atribuir ao Ministério Público a representação, quando a representação ou o patrocínio podem ser assegurados por serviços jurídicos ministeriais ou por advogados contratados e também que não deve ser conferido o encargo de promoção processual , se este pode ser prosseguido por outros órgãos administrativos.

Esta vertente parece-me ser a mais sensata, não tentando sobrepor ou remover competências atribuídas constitucionalmente ao órgão, e é a que se aproxima mais da solução apresentada no EMP no art.º. 93º, previsto para situações de conflito na representação pelo Ministério Público.

O Ministério Público, não obstante, ser um órgão central do Estado, é um órgão independente e imparcial. Tem como uma das funções principais defender a legalidade democrática, não podendo ser representante de parte que tenha cometido uma possível ilegalidade. No entanto, também não é um verdadeiro juiz, não lhe cabendo decidir se o ato cometido pelo Estado é ilegal e invalida a sua função de representação. Posto isto, a solução mais simples para estas situações de conflito é a de permitir que outros agentes que também possuam competência legal sejam parte do processo.

 

Rodrigo Mendes, n.º 56744

 

Bibliografia:

Andrade, José Carlos Vieira de Andrade – A Justiça Administrativa (Lições) - Almedina

Almeida, Mário Aroso de – Manual de processo administrativo – 2016;

Leitão, Alexandra - A Representação do Estado pelo Ministério Público nos Tribunais Administrativos

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2010

Silva, Vasco Pereira - O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise

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por ano4subturma6 às 22:59



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